Opinião

Transferência de titularidade – avanços com a Resolução 1.000, mas necessidade de um olhar mais abrangente

Não adianta normas, instruções normativas e outros direcionamentos deixando claro que a dívida de consumo pretérita pertence a quem usufrui do serviço e não ao novo morador. Isso é básico no direito, mas alguns insistem tentar cobrar o consumidor assim mesmo

Por Fábio Amorim

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Iniciando este breve artigo, é importante deixar registrado, que a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), no período de elaboração da Resolução Normativa nº 1.000/2021, promoveu, como sempre, amplo debate com entidades de referência, podendo ser citadas o Conselho Nacional de Consumidores de Energia Elétrica, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, a Comissão de Apoio ao Processo Regulatório sob a Perspectiva do Consumidor, a Secretaria Nacional do Consumidor, a Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica, Defensorias Públicas, a AGER-MT, a Anatel, a Câmara Brasileira da Indústria da Construção e a Secretaria de Modernização da Presidência da República.

Como descrito no site da Aneel, “foram realizadas duas fases da Consulta Pública 018/2021, que expôs a minuta de resolução para sugestões da sociedade, a Aneel recebeu 2.651 contribuições de cidadãos, empresas, associações e instituições, sendo 1.088 total ou parcialmente agregadas ao regulamento final.” 

Portanto, mais uma vez, demonstrada a existência de amplo debate, transparência, diálogo, com os stakeholders do setor e fora dele, para que tivéssemos um ato normativo que não seja o futuro questionado com questões que foram debatidas a exaustão e todos puderam participar e contribuir.

Como alguns outros artigos específicos que fiz sobre pontos que entendo de relevância na resolução supracitada, desta vez chamo a atenção para a Transferência de Titularidade. Mas aprofundo para os casos que os clientes se mantem inertes em seu dever de tomar as medidas que lhe competem.

Apesar de constar de resoluções que antecederam a Resolução 1.000, o objeto transferência de titularidade, normalmente, está no TOP 5 das ações propostas e dos estoques de ações que hoje possuem as distribuidoras.

Como sempre afirmo, se Comercial e Jurídico não dividirem metas ou não estarem extremamente aliados no resultado consistente e em prol de da empresa, continuaremos a observar um ingresso constante de ações onde o consumidor afirma que para realizar a transferência de titularidade, um preposto da empresa está exigindo uma série de documentos que não são necessários para a efetivação da mudança de endereço e condicionando esta mudança ao pagamento de débito pendente daquela unidade consumidora.

Essa é uma parte do problema, mas existe outra que é a desídia do consumidor em avisar sobre a troca de titularidade, deixar o tempo passar, e “esquecer” de suas obrigações. Essa inércia resulta em inadimplência, devedores duvidosos e até perdas comerciais. Portanto, equilíbrio, pois não estamos diante de uma receita de bolo, ainda mais no Rio de Janeiro, onde, posso garantir como morador e quem nasceu neste estado, que não existe consumidor igual no país, negativamente, é claro.

Não adianta normas, instruções normativas e outros direcionamentos deixando claro que a dívida de consumo pretérita pertence a quem usufrui do serviço e não ao novo morador. Isso é básico no direito, mas alguns insistem tentar cobrar o consumidor assim mesmo. Resultado: ele até paga, mas depois demanda em juízo e recebe o valor de volta e muitas das vezes é indenizado moralmente. Uma conta que não fecha e não faz sentido algum. O que ganha a empresa com isso mesmo sabendo que está agindo em desalinho com os normativos da Aneel e com o direito? Se isso acontecer, que se condene a distribuidora, mas o outro lado não pode ser esquecido e tolerado.

A Aneel, agora na Resolução 1.000, aprimorou ainda mais a redação do tema, cujo prazo passa a vigorar a partir de 01/04/2022 e entendo relevante a transcrição deste posicionamento, senão vejamos:

 “Mudança para imóvel com a conta de luz atrasada: Se o ocupante anterior de um imóvel deixou contas de luz em atraso, a distribuidora de energia elétrica não pode cobrar o valor do novo ocupante como condição para transferir a titularidade, nem exigir que ele assine qualquer documento se responsabilizando pela quitação. A dívida pertence ao titular da conta em atraso (no caso, ao antigo morador) e não ao imóvel, portanto o novo titular no mesmo imóvel não tem nada a ver com ela. Essa já era a regra da Aneel e agora ela ficou mais explícita.”

No Voto do Diretor Sandoval Feitosa (Processo: 48500.005218/2020-06 -46ª Reunião Pública Ordinária da Diretoria), podemos verificar de forma cristalina algumas diretrizes que devem ser observadas pelas distribuidoras. Observe a seguir:

 “O débito oriundo dos serviços de energia elétrica não está vinculado à titularidade ou posse do imóvel, e sim à pessoa que manifesta vontade de receber os serviços, por essa razão a distribuidora não poderá condicionar a realização da alteração da titularidade à quitação de débito pendente em nome de terceiros ou exigir a assinatura de termo de “confissão de dívida de titular anterior”. Nessa linha, a proposta final não altera o mérito da regulação vigente, mas explicita que a distribuidora não poderá exigir ou condicionar a execução da alteração de titularidade: 

  1. ao pagamento de débito não autorizado pelo consumidor e demais usuários ou de débito de titularidade de terceiros;
  2. à assinatura de qualquer termo em que o consumidor e demais usuários assumam a responsabilidade por débito de titularidade de terceiros, a exemplo de termo de aceite, de assunção, de responsabilidade ou de confissão de dívida; ou
  3. à transferência em sistema de débitos de titularidade de terceiros para o titular ou novo titular das instalações.

Adicionalmente, a proposta de redação contempla as seguintes melhorias:

  1. explicitação de que a distribuidor deve fornecer o protocolo na solicitação de alteração de titularidade e, em caso de indeferimento, deve entregar por escrito o fundamento de sua decisão;
  2. explicitação de que o consumidor deve ser informado sobre como estão reguladas as condições para a alteração de titularidade, e que deve ser orientado quanto ao encerramento contratual caso seja titular de outras unidades consumidoras;
  3. esclarecimento de que o prazo que deve ser praticado pela distribuidora na análise da solicitação de alteração de titularidade é o do encerramento contratual e faturamento final, de até 3 dias úteis na área urbana e 5 dias úteis na área rural; e
  4. explicitação no texto da diferença de tratamento para solicitação de ligação nova e de alteração de ”

Se a clareza acima não for suficiente, cabe uma leitura acurada nos artigos 9°, 138 e 139 da Resolução 1.000.

Adicional ao que foi dito até agora e tentando demonstrar o outro lado da moeda, existem brechas que são usadas por consumidores desonestos e isto, que está fora do regramento e demonstra a má fé dos clientes, também, tem que ser observado pelo judiciário, agência e sociedade como um todo.

Se por um lado a empresa pode errar, até em razão dos milhares de consumidores que possui, dúvidas não restam que tentativas de aumentar a inadimplência e as perdas comerciais da empresa há muito são realizadas pelos consumidores desonestos, sendo imprescindível que busquemos: (i) aprimorar os regulamentos setoriais, como agora está sendo feito; (ii) diminuir as contendas entre empresas e clientes; (iii) fazer com que a tarifa seja módica (mas cubra os custos da concessionária); (iv) alinhar entendimento entre as distribuidoras e regulador, para que possamos pensar em respaldar e defender o consumo adimplente, aquele que é honesto, que esteja de boa-fé, e não aqueles muitos que vislumbram uma oportunidade de não pagar e nela se fiam, causando desequilíbrio econômico e financeiro dos contratos, já que uma tarifa onerada pelo alto grau de inadimplemento e perdas comerciais não pode garantir a efetiva e adequada prestação do serviço.

Oportuno, neste momento, transcrever posicionamento do judiciário, que, como poderá ser observado, rechaça, totalmente, a inércia do consumidor, deixando cristalino que o responsável pelo pagamento é quem efetivamente consome, senão vejamos:

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL

Processo: AC 70039446794 RS

Relator(a): Túlio de Oliveira Martins

Julgamento: 25/11/2010

Órgão Julgador: Décima Câmara Cível

Publicação: Diário da Justiça do dia 13/12/2010

RESPONSABILIDADE CIVIL. DÉBITO DE ENERGIA ELÉTRICA. IMÓVEL ALUGADO. RESCISÃO. TROCA DE TITULARIDADE DA CONTA DE LUZ NÃO DILIGENCIADA PELO AUTOR. DANO MORAL NÃO CONFIGURADO.

À época em que teve o autor seu nome inscrito no SPC, não mais residia no imóvel cujas faturas de energia elétrica estão em aberto. Cabia ao autor informar à ré RGE, antes da mudança de endereço, a troca de titularidade, a fim de que as faturas de energia elétrica fossem expedidas em nome do verdadeiro usuário. O demandante não logrou comprovar os fatos constitutivos de seu direito, articulados na inicial... (Grifo do autor)

Recurso Cível 71003757853 RS (TJ-RS)

Data de publicação: 21/09/2012

Ementa: CONSUMIDOR. ENERGIA ELÉTRICA. FATURAS DE LUZ INADIMPLIDAS. TRANSFERÊNCIA DE TITULARIDADE DO IMÓVEL. AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE DO ATUAL PROPRIETÁRIO PELA DÍVIDA ANTERIOR. OBRIGAÇÃO PROPTER PERSONAM. As faturas de energia elétrica devem ser quitadas pelo consumidor que efetivamente morou no imóvel e utilizou do serviço, quando foi constituído o débito. Não há responsabilidade do novo proprietário, porquanto se trata de obrigação propter personam. O contexto probatório comprova que a autora não era titular da unidade consumidora, portanto, não poderá responder por ela. (Grifo do autor)

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA

Apelação Cível AC 876843 SC 2011.087684-3 (TJ-SC)

Data de publicação: 09/02/2012

Ementa: RESPONSABILIDADE CIVIL. INDENIZAÇÃO. DANO MORAL. NEGATIVAÇÃO DO NOME DO DEMANDANTE NO SPC. FATURAS MENSAIS DA CONTA DE ENERGIA ELÉTRICA INADIMPLIDAS. VENDA DO IMÓVEL AO DEMANDADO. AUSÊNCIA DE TRANSFERÊNCIA, PELO ADQUIRENTE, DA TITULARIDADE DA FATURA JUNTO À CELESC. PROVIDÊNCIA QUE IMCUMBIA AO NOVO PROPRIETÁRIO. CULPA DESTE EVIDENCIADA. ATO ILÍCITO CONFIGURADO. EXISTÊNCIA DO DEVER DE INDENIZAR (ARTS. 186 E 927 DO CC E ART. 333, INC. I, DO CPC). PEDIDO REPARATÓRIO NEGADO. RECURSO PROVIDO. Configura ato ilícito e gera, de conseguinte, o dever de indenizar por abalo moral a inconsequente inação do comprador em transferir, para o seu nome, a titularidade da conta de energia elétrica do imóvel que adquiriu do autor, da qual decorreu a negativação do nome do vendedor no SPC. (Grifo do autor)

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESPÍRITO SANTO

Apelação Cível AC 48030152796 ES 48030152796 (TJ-ES)

Data de publicação: 01/08/2006

Ementa: CIVIL. PROCESSO CIVIL. CDC. LEGISLAÇAO ESPECIAL. CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO DE ENERGIA ELÉTRICA. OBRIGATORIEDADE DE PRESTAR SERVIÇO ADEQUADO AOS CONSUMIDORES. MUDANÇA DA TITULARIDADE DA CONTA DE ENERGIA ELÉTRICA. SERVIÇO NÃO SOLICITADO PELO CONSUMIDOR. ÔNUS DA PROVA QUE INCUMBE À EMPRESA PRESTADORA DE SERVIÇO PÚBLICO. DANOS MORAIS. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DA EMPRESA CONCESSIONÁRIA. DIMINUIÇÃO DO VALOR DA CONDENAÇÃO IMPOSTA NA SENTENÇA. PRECEDENTES DO C. STJ.

I - A Recorrente é pessoa jurídica de direito privado, concessionária de serviços públicos de energia elétrica no estado do Espírito Santo, pelo que se submete à norma do art. 175 da CF/88, cujo parágrafo único foi regulamentado pela Lei nº 9427/96, que instituiu a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), e disciplinou o regime das concessões de serviços públicos de energia elétrica.

II - A Recorrente possui o encargo de prestar serviço adequado nos termos do art. 6º, 1º, c/c art. 31, I, ambos da Lei nº 8.987/95, devendo satisfazer as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia e modicidade das tarifas quando da prestação do serviço público de energia elétrica. A Recorrente ainda possui o encargo de observar os direitos e deveres dos usuários para a obtenção e utilização do serviço de energia elétrica, cláusula essencial ao contrato de concessão de serviço público (art. 23, VI, da Lei nº 8.987/95), e a responsabilidade de arcar com todos os prejuízos causados ao poder concedente, aos usuários ou a terceiros, na forma prescrita no art. 25 da Lei nº 8.987/95.

III - O procedimento de mudança da titularidade da conta de energia elétrica do consumidor deve ser feito de modo a atender ao conceito de serviço adequado (art. 175, parágrafo único, IV, CF c/c art. 6º, 1º, Lei nº 8.987/95); à qualidade do serviço público de energia elétrica prestado pela Recorrente (art. 14, II, Lei nº 9.427/96) e, com mais destaque, ao dever de observar...” (Grifo do autor)

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO

0005354-15.2011.8.19.0002 - APELACAO

DES. FERNANDO CERQUEIRA - Julgamento: 14/01/2013 - DÉCIMA QUINTA CÂMARA CÍVEL

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER, CUMULADA COM INDENIZATÓRIA POR DANOS MORAIS. NEGATIVAÇÃO DO NOME DO AUTOR EM DECORRÊNCIA DO NÃO PAGAMENTO DE FATURAS DE ENERGIA ELÉTRICA. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. DÉBITOS REFERENTES AO PERÍODO EM QUE O AUTOR NÃO MAIS RESIDIA NO IMÓVEL. APELANTE QUE AFIRMOU QUE NÃO SOLICITOU À CONCESSIONÁRIA APELADA A TROCA DE TITULARIDADE. AUSÊNCIA DE IRREGULARIDADE NA NEGATIVAÇÃO, POIS O IMÓVEL PERMANECEU CADASTRADO EM NOME DO APELANTE, QUE DEIXOU DE SOLICITAR O ENCERRAMENTO DO CONTRATO DE FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA OU DE INFORMAR A TRANSFERÊNCIA DA TITULARIDADE. DANO MORAL NÃO CONFIGURADO. RECURSO A QUE SE NEGA SEGUIMENTO, NOS TERMOS DO ART. 557, CAPUT, CPC.” (Grifo do autor)

 

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

AgRg no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 291.990 - SP (2013⁄0026343-6)

RELATOR: MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO

AGRAVANTE: ANTÔNIO REIS DE SANTANA

ADVOGADO: SÉRGIUS DALMAZO E OUTRO(S)

AGRAVADO: COMPANHIA PIRATININGA DE FORÇA E LUZ

ADVOGADOS: CÁSSIA LEAL DE CARVALHO E OUTRO(S)

JOSÉ EDGARD DA CUNHA BUENO FILHO E OUTRO(S)

RINAIRA PILAR GOMES DONEGA E OUTRO(S)

EMENTA

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. AUSÊNCIA DE NOTIFICAÇÃO À CONCESSIONÁRIA SOBRE A MUDANÇA DE TITULARIDADE. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. SÚMULA 07 DO STJ. AGRAVO A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

    1. O Tribunal de origem firmou entendimento no sentido de ser do autor o ônus de comunicar à concessionária a venda do seu imóvel, a fim de alterar no registro imobiliário a titularidade do bem. Assim, rever esse posicionamento demandaria o revolvimento de questões fático-probatórias, o que encontra óbice perante a Súmula 7⁄STJ.
    2. Agravo regimental não provido.

 

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Ministros da QUARTA Turma do Superior Tribunal de Justiça acordam, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, negar provimento ao agravo regimental, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Raul Araújo (Presidente), Maria Isabel Gallotti, Antonio Carlos Ferreira e Marco Buzzi votaram com o Sr. Ministro Relator.

Brasília (DF), 27 de agosto de 2013 (Data do Julgamento) (Grifo do autor).

 

Pelo posicionamento jurisprudencial acima transcrito, responde pela dívida aquele que usufruiu, e até quando usufruiu dos serviços da concessionária. Independentemente do momento em que houve a troca da titularidade. Porém, quando há inércia do usuário, a cobrança feita (inclusive judicial) de eventuais prejuízos ao usuário não cadastrado não se afigura abusiva.

Feita a análise da questão direta e regulatória relacionada a transferência de titularidade, entendo importante a visão consumerista e da locação que se aplicam ao caso.

Assim, cumpre salientar que somente aqueles que se enquadram na definição do artigo 2º do Código de Defesa do Consumidor é que podem valer-se desse instituto, senão vejamos:

Art. 2º Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.

O consumidor, portanto, é aquele que efetivamente se utiliza dos serviços de energia elétrica prestados pela concessionária. Além disso, não basta a mera afirmativa do consumidor que alienou o imóvel ou o locou, ao contrário, fundamental é a comprovação deste negócio.

Dessa forma, ainda que não constasse no cadastro da empresa, frise-se, por sua única e exclusiva responsabilidade, este consumidor foi quem usufruiu do serviço e mantém uma relação de consumo com a empresa, o que não pode e não é desconsiderado pelos tribunais pátrios.

Ainda relevante esclarecer que jamais poderemos considerar este consumidor como clandestino, até porque clandestinidade vem de ligação clandestina e neste caso este não é cliente ou consumidor da empresa, sequer tem cadastro, isto é, é um “fantasma” que usa a rede da empresa para receber energia indevidamente. Cadastro errado por falta de transferência de titularidade, obrigação do consumidor, é algo totalmente diferente, não havendo qualquer nexo.

Nunca é demais diferenciar ligação clandestina de cadastro irregular. Sobre a definição de ligação clandestina, tomo a liberdade de transcrever meu entendimento, publicado no livro As irregularidades no consumo de energia elétrica, Editora Synergia, Rio de Janeiro, 2010:

A ligação clandestina ocorre quando é procedida a ligação direta de um determinado imóvel à rede elétrica da concessionária, ou a algum ponto anterior à medição de outra unidade consumidora, em benefício de pessoa não cadastrada como cliente da empresa e, por conseguinte, sem que haja medição do consumo por inexistir no local aparelho de medição.

Assim, inexiste relação contratual com a distribuidora. Por conseguinte, não há uma atuação eficaz por mero desconhecimento de sua existência. Na maioria dos casos, ocorre em áreas invadidas ou de disputas fundiárias, e em comunidades com impedimento de acesso em função de se tratar de área de risco, onde inexiste equipamento de medição da energia elétrica consumida.

Portanto, dúvida não há entre a diferença entre as duas situações.

Se isto não bastasse e para justificar a tese de que estamos diante de contratos de fato e de trato sucessivo, oportuna é a transcrição de acórdão em apelação proferido pelo Tribunal de Justiça de Bahia, sendo este objeto de recurso e julgado no Superior Tribunal de Justiça (Resp nº 973.879) e publicado no DJ de 09 de novembro de 2009. Veja a ementa proferida pelo tribunal a quo:

Ementa:

APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE RELAÇÃO CONTRATUAL CUMULADA COM PEDIDO DE REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS. PRELIMINAR DE CERCEAMENTO DE DEFESA PELO JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE. INOCORRÊNCIA.

O juiz é o destinatário da prova, podendo formar o seu convencimento com as provas já existentes. Preliminar rejeitada. Aquisição ininterrupta e habitual de gás natural.

Presunção da existência de avença. Princípio da lealdade e da boa-fé objetiva.

Restrição no fornecimento de gás imposto pela Petrobrás à empresa concessionária de serviço público.

Em decorrência deste racionamento, a apelante manteve o fornecimento de gás nos níveis normais com todas as empresas com as quais mantinha contrato escrito, restringindo apenas o fornecimento à apelada.

Tratamento discriminatório em relação à empresa que, embora compradora habitual há anos, não tinha contrato formalizado. Reconhecimento da existência de contrato tácito. Obrigação de indenizar pelos danos sofridos. Culpa objetiva. Apelo improvido. Sentença confirmada em sede de reexame necessário. (Grifo do autor)

Ademais, o artigo 1.079 do antigo Código Civil de 1916 assim rezava: “A manifestação da vontade, nos contratos, pode ser tácita, quando a lei não exigir que seja expressa”.

Por tácita entende-se a manifestação do contratante da qual se verifica claramente e inequivocamente manifestada a sua vontade. O silêncio pode alcançar tal efeito em certos casos (quid tacit perit consentitur). É o chamado silêncio conclusivo. E no caso dos consumidores que não cumprem suas obrigações de solicitar as concessionárias as transferências de titularidade e fazer com que as empresas tenham seus cadastros atualizados, há o silêncio conclusivo pela sua inércia, mas isso não retira dele a responsabilidade de pagar pelo consumo ou recuperação de consumo da unidade consumidora onde ele se encontra. A Resolução exige que ele o faça, mas como vimos, estamos diante de inúmeras situações opostas a esta.

Se as condutas distorcidas e desalinhadas dos consumidores, que buscam brechas e usam de má-fé se alastrarem, podemos asseverar que estará em risco a manutenção do sistema de distribuição de energia elétrica, que depende da pontualidade, responsabilidade e boa-fé dos usuários. Não se protege o interesse da coletividade estimulando a mora, inclusive, instituindo o caminho judicial como via obrigatória.

Se as perdas de receita decorrentes da desídia e má-fé do consumidor de energia se mantiverem no patamar hoje encontrado, um efeito imediato junto à concessionária e outro mediato junto aos consumidores em geral ocorrerá. A diminuição da arrecadação por parte da concessionária, que é remunerada pelo custo do serviço, determinará uma diminuição no investimento do serviço e do sistema, levando esta empresa a se socorrer no mercado financeiro para manutenção dos serviços adequados e contínuos.

Tal situação demonstra, sem dúvida, um acentuado aumento no custo do serviço que proporciona, para o equilíbrio econômico e financeiro do contrato de concessão, o aumento da remuneração da concessionária com reflexo direto na tarifa que é paga pelo consumidor.

Em outras palavras, o consumidor, ao não efetuar o pagamento de sua fatura, ao furtar ou fraudar o consumo ou não providenciar a transferência da titularidade, deixa de diligenciar conforme o devido, haja vista que sabendo da existência de um ilícito e do débito que só faz aumentar, permanece inerte, em total descumprimento aos ditames contratuais, legais e sobretudo morais.

 Quanto à boa-fé, vale lembrar o entendimento de que esta implica na observância do chamado duty to mitigate the loss, ou seja, dever de mitigar o próprio prejuízo.

Neste sentido, o enunciado 169 referente a III JORNADA DE DIREITO CIVIL, Parte Geral, que assim dispõe: “o princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo”, se aplicado a um caso concreto, temos o seguinte precedente do TJRJ:

TJ-RJ - APELAÇÃO: APL 83684420108190001 RJ 0008368-44.2010.8.19.0001

SUMÁRIO. INDENIZATÓRIA. INTERRUPÇÃO NO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA, EM VIRTUDE DE INADIMPLEMENTO. CONTRATAÇÃO DE DÉBITO AUTOMÁTICO DISPONIBILIZADO PELA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA PARA O PAGAMENTO DA FATURA. INEXISTÊNCIA DO DESCONTO NA DATA APRAZADA. FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. INCIDÊNCIA DO ART. 14, DO CDC. DANOS MORAIS. APELAÇÃO. RECURSO VISANDO A MAJORAÇÃO DA VERBA INDENIZATÓRIA. DEVER DO CONSUMIDOR DE, IGUALMENTE, SER DILIGENTE EM SUA VIDA PESSOAL, OBSERVANDO O AVISO DE CORTE E A AUSÊNCIA DO DÉBITO EM SEU EXTRATO BANCÁRIO. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA E DOS DEVERES DE LEALDADE E COOPERAÇÃO QUE TAMBÉM INCIDEM SOBRE A CONDUTA DO CONSUMIDOR. VALOR COMPENSATÓRIO ESCORREITO, ATENTO ÀS PECULIARIDADES DO CASO CONCRETO, COMPATÍVEL COM A REPROVABILIDADE DA CONDUTA DO AGENTE SEM REPRESENTAR ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA PARA A VÍTIMA. RECURSO CONHECIDO, AO QUAL SE NEGA SEGUIMENTO, NA FORMA DO ART. 557, CAPUT, DO CPC. (Grifo do autor).

O artigo 422 do novo Código Civil, tendo como fonte inspiradora o artigo 1337 do Código Italiano, define o princípio da boa-fé objetiva como sendo aquele que: “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”

Esse entendimento consagra o princípio da boa-fé e impõe uma conduta honesta, leal e correta por parte dos contratantes. Desse modo, cria-se uma regra de conduta e um dever de agir de acordo com padrões sociais estabelecidos e reconhecidos, sendo sua base e padrão a conduta comum de um homem médio.

Assim, o que se espera é um comportamento que deve existir no tempo estabelecido no contrato, mas, também, na fase pré-contratual (fase de tratativas) e na pós-contatual. Portanto, nessas fases jamais deverão prevalecer o intuito de prejudicar o outro contratante ou de se aproveitar de sua inferioridade econômica, intelectual ou social, evitando-se, desse modo, a obtenção de vantagens indevidas.

Por óbvio, a boa-fé objetiva é reflexo da conduta dos contratantes e deverá espelhar todas as etapas (antes, durante e depois do contrato) a honestidade e a lealdade que se espera e almeja entre as partes.

O que se observa atualmente é que apesar da concessionária distribuidora agir em estrito cumprimento às determinações regulatórias da Aneel, alguns consumidores inadimplentes e fraudadores, que agem de forma clara com má-fé e no mínimo desídia, estão causando sérios impactos ao fluxo de caixa da empresa, o que, no caso do Rio de Janeiro, pode ser mais uma brecha observada por um consumidor que, por hábito e cultura, se especializou em ser um dos maiores demandantes no Judiciário, por serem aqueles que mais manipulam as redes e medidores das concessionárias aqui estabelecidas. O que se precisa e se vislumbra é o apoio da Aneel, do Judiciário e da sociedade, demonstrando assim, que tipo de consumidor de energia possui e convive.

Estamos diante de crime para as questões relacionadas ao furto e à fraude no consumo de energia elétrica e de oportunidade na demora de se comunicar uma venda ou locação de um imóvel e sua consequente transferência de titularidade.

Por oportuno, importante transcrição de trecho de recente decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, senão vejamos:

Requerente: DANIELLE REZENER DE ANDRADE. Requerido: LIGHT - SERVIÇOS DE ELETRICIDADE S/A. Destinatário: ALESSANDRA DE ALMEIDA FIGUEIREDO. Fica V.Sª/V.Exª intimado da determinação abaixo: DANIELLE REZENER DE ANDRADE ajuizou ação em face da LIGHT SERVIÇOS DE ELETRICIDADE S/A. Narra, em resumo, que seu anterior companheiro efetuou a compra do imóvel situado a Rua Doutor Nunes Machado nº 258 A, em 24/05/2002; que depois de efetuada a compra do imóvel, foi até a ré para solicitar outro relógio em seu nome, tendo em vista, que o relógio do imóvel já se encontrava desligado; que existiam débitos anteriores no CPF do antigo proprietário, referentes aos meses de agosto de 2011 a dezembro de 2011; que para surpresa, a ré informou que só poderia instalar outro relógio no imóvel depois de efetuado o pagamento total do débito; que não deveria ter que pagar por uma dívida que não é dela; que se encontra residindo na casa de sua mãe, pois não há condições de ficar em sua residência sem o fornecimento de energia pela empresa ré; que tentou solucionar a questão, administrativamente, sem êxito. Requer o cancelamento das cobranças; a instalação do relógio no CPF da autora e a compensação pelo dano moral. A inicial veio acompanhadas pelos documentos dos lvs. 14/31. Decisão do lv. 35 que não apreciou o pedido de gratuidade de justiça à autora. Audiência de conciliação, no lv. 50, sem acordo. Neste mesmo ato, a autora, ouvida informalmente, disse que comprou a casa em 2002 e que quando comprou a casa já havia ‘gato instalado’; que seu relógio estava parado, mas havia fornecimento de luz através desse ‘gato’. Contestação da ré nos lvs. 67/79, arguindo, preliminarmente, ilegitimidade ativa, vez que a autora ingressou com a presente demanda tendo como um de seus pleitos o cancelamento de tal débito e que este valor nunca foi imputado à demandante, até mesmo porque a empresa ré não foi acionada para efetivar a troca de titularidade do imóvel mencionado. Réplica da autora nos lvs. 105/106. É O RELATÓRIO. PASSO A DECIDIR. Entendo desnecessária a dilação probatória, posto que as provas necessárias ao julgamento já 1195 estão nos autos. Inicialmente, rejeito a preliminar de ilegitimidade ativa, posto que autora alega que compareceu em uma das lojas da ré para requerer a mudança de titularidade do relógio instalado em sua residência e que a ré lhe impôs o pagamento de débitos pretéritos pertencentes ao antigo proprietário do imóvel. Reputo presentes os pressupostos processuais e as condições de regular desenvolvimento acionário. Passo ao mérito. Pelo que dos autos consta, vê-se que o companheiro da autora comprou o imóvel, objeto desta lide, em 2002, e a autora reclama que a ré quer que ela pague por débitos de 2011 que não são dela, posto que estão em nome de terceiro, como condição para troca de relógio e posterior troca de titularidade. Em audiência, a autora confessa que tinha ‘gato’ (ligação irregular de luz) no referido imóvel desde que o comprou e que havia fornecimento de luz através deste ‘gato’. Muito embora esteja o relógio em nome do antigo titular, a verdade é que o inconformismo da autora não se sustenta, visto que os débitos são dela e não do outro proprietário. Ora, se os débitos datam de 2011, e o imóvel foi comprado em 2002, como tais débitos poderiam ser do antigo proprietário? Vê-se que, na realidade, os débitos são apenas formalmente pertencentes ao antigo proprietário, mas foram gerados por consumo da família da autora e, de fato, pertencem a esta. Em réplica, a autora alega que a responsabilidade do ‘gato’ também era do antigo proprietário, pois já comprou o imóvel com este ‘gato’. Mais uma vez a autora tenta ludibriar o juízo com alegações falaciosas, pois sabia que o medidor de consumo não funcionava adequadamente, tendo se beneficiado desta situação por anos a fio, utilizando-se dos serviços sem a devida contrapartida e com noção plena de tal fato. Caso contrário, se tivesse agido desde o início de boa-fé, teria procurado a ré desde a aquisição do imóvel para regularizar a situação, sendo certo que não o fez. Por fim, atesta-se que a autora deflagrou a presente demanda alterando a verdade dos fatos, afirmando que os débitos a ela impostos pela ré são de terceiro, pelo que deverá ser condenada por litigância de má-fé, conforme o prescrito nos artigos 80, II, e 81, caput, ambos do NCPC. Ante ao exposto, JULGO IMPROCEDENTES OS PEDIDOS formulados na petição inicial. Condeno a autora, com supedâneo no art. 81 do NCPC, a pagar à ré multa de 1% (um por cento) sobre o valor da causa, mais honorários, na proporção de 20% do valor da causa. Condeno, também, a autora a pagar às custas do processo. Após o trânsito em julgado, dê-se baixa e arquive-se, com posterior remessa dos autos ao setor de arquivamento. P.R.I. (Grifo do autor)

Vale ressaltar que o que vem ocorrendo corriqueiramente na “indústria do dano (suspensão do serviço, cobrança e negativação, por exemplo) moral” é que muitos consumidores, podendo evitar o dano, agindo assim de boa-fé (objetiva) e em cooperação com seu fornecedor, ao contrário, esperam que o dano ocorra para depois requerer indenização. Afinal, mesmo tendo sido avisado sobre o débito e a possibilidade de suspensão do serviço e de saber que é sua a responsabilidade de providenciar a transferência da titularidade, prefere não diligenciar e evitar o dano, pois sabe que há a possibilidade de aguardar a sua ocorrência para se locupletar com o recebimento de um “dinheiro fácil”.

Há, portanto, que se atentar para o bom senso e, principalmente, para os princípios da boa-fé e da razoabilidade.

Diante da relação efetiva de consumo, a desídia e má-fé dos consumidores ao não cumprirem sua obrigação de atualizarem seus cadastros, as concessionárias, na prática, se deparam com posturas de consumidores que não cumprem suas poucas obrigações e mesmo assim não podem ser cobrados.

Ademais restou mais do que demonstrado que o acertado entendimento do judiciário é no sentido de prevalecer à existência da relação de consumo e não se há contrato formal e cadastro atualizado.

Louvo a evolução e o esmero da Aneel com a nova Resolução 1000, mas, por outro lado, a prevalecer a tese que ora questionamos, significa aumentar a inadimplência e as perdas comerciais, aumentar o desgaste com o consumidor e, por consequência, o ingresso de milhares de ações judicias, o que, no meu entender, não parece lógico e razoável.

Sócio da Fábio Amorim Consultoria Ltda, Presidente da Comissão de Direito de Energia Elétrica da OAB/RJ, Conselheiro do Conselho Empresarial de Energia da ACRJ, Professor, Palestrante e Árbitro em Câmaras Arbitrais renomadas.

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