Opinião

A salvação da Ipiranga no refino e na petroquímica

Por Redação

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O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) deferiu medida cautelar administrativa requerida pelas secretarias de Acompanhamento Econômico (SEAE) e de Direito Econômico (SDE) no processo administrativo que envolvia a compra do Grupo Ipiranga pelas empresas Petrobras, Braskem e Ultra. A decisão assegura a reversibilidade da referida operação de aquisição. A autoridade brasileira agiu de acordo com a legislação vigente, e em especial fez cumprir o inciso IX do artigo 1º da Lei n° 9.478/97, a Lei do Petróleo.

Cabe, agora, às autoridades do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) aprofundar-se na questão, e este estudo traça algumas linhas iniciais desse aprofundamento no que tange às atividades da Ipiranga na área de refino. O art. 177 da Constituição Federal dispõe que a atividade de refino de petróleo nacional ou estrangeiro, embora atividade econômica - em oposição ao serviço público explorável mediante concessão, como é o caso dos serviços de saneamento, telefonia etc. -, constitui monopólio da União, passível, contudo, de delegação a entes privados por deliberação da própria União.

Essa deliberação, por sua vez, está condicionada à respectiva base legislativa. O art. 53 da Lei do Petróleo regulamenta tal delegação, ao estabelecer que qualquer empresa ou consórcio pode submeter proposta à Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) para construir e operar refinarias mediante autorização. A matéria foi regulada com maior detalhe pela Portaria ANP n° 28/1999 (em seu anexo Regulamento Técnico n° 1/00). No art. 45 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias foram excluídas do monopólio apenas as refinarias que, à época da Lei n° 2.004/53, já se encontravam sob controle privado, como é o caso da Ipiranga.

Assim, a indústria do refino no Brasil é dividida em 14 refinarias operadas pela Petrobras e outras duas gerenciadas por empresas particulares: a de Manguinhos, no Rio de Janeiro, controlada pela hispano-argentina Repsol YPF, e a Ipiranga, no Rio Grande do Sul. Apenas com esses números, pode-se inferir que a produção das duas refinarias privadas não afeta expressivamente o mercado relevante de refino e processamento brasileiro. E no detalhe, essa inferência ganha fôlego.

A Petrobras produz sozinha 298.000 m³ por dia de operação, ao tempo que a Refinaria Ipiranga produz 2.700 m³ no mesmo período. Esta, somada à produção de Manguinhos (hoje, salvo engano, fora de operação por questões financeiras), não atinge mais do que 2% da capacidade total de refino do país. Logo, não se pode dizer que tenha havido modificação substancial da situação de fato existente antes da operação ora objeto de análise do SBDC.

Considerando que o atual parque brasileiro de refino possui relevante potencial para aumento de sua capacidade de conversão, deve-se atentar à política nacional de proteção da atividade econômica, especialmente porque o país é hoje ainda grande dependente da importação de derivados provenientes do Oriente Médio, das Américas do Sul e Central, da Austrália e da África. Colocar obstáculos à recente operação com a Ipiranga significa, isso sim, condená-la ao destino de Manguinhos, ou seja, a uma falência técnica pela incapacidade de competir sozinha em um mercado globalizado, sobretudo em uma área onde, como se sabe, as margens de lucros são tão estreitas.

A refinaria Ipiranga, a toda evidência, resistiria poucos e magros anos se não fosse agregada, como o foi, a um grupo com alavancagem e fôlego para competir nesse que é um mercado não local ou mesmo regional, mas mundial. Com relação à Copesul sob o antigo domínio da adquirida Ipiranga, é importante dizer, inclusive, que, do ponto de vista operacional, já se via, de fato, uma operação conjunta, 'sinergizada', entre Petrobras e Ipiranga. Haja vista que a Copesul, por contrato, detinha o fornecimento exclusivo de nafta produzida pela Refinaria Alberto Pasqualini (Refap), que opera no parque de tancagem da Copesul no município gaúcho de Osório, em uma verdadeira simbiose operacional, ainda que até há pouco não ainda jurídica.

A Copesul, com efeito, há muito processa nafta, principalmente condensado e GLP fornecidos pela Refap, gerando produtos básicos na segunda geração da cadeia petroquímica. Assim, sem dúvida a aquisição da Ipiranga será uma ferramenta fundamental para diminuir a vulnerabilidade do país em relação às importações de derivados de petróleo. Novamente o que se está impedindo é a morte da Ipiranga, o que implicaria redução da oferta de derivados e, por conseqüência, o aumento de preços no mercado. Exatamente o que deveria buscar impedir o SBDC.

Com efeito, os sistemas antitruste, em qualquer parte do mundo, apenas existem para proteger o mercado de concentrações lesivas ao interesse do mercado, ou seja, geradoras de ineficiências econômicas e situações de abuso, cartel, monopólio de preços. O que se vê no caso, porém, é uma empresa de expressão insignificante no parque de refino nacional, espremida pela competição internacional e incapaz de respirar dentro de uma fatia tão estreita do mercado, e que encontrou sua tábua de salvação na associação a grupos capazes de alçá-la aos mercados internacionais, bem no estilo do que ocorreu no caso Ambev, hoje um exemplo de sucesso e orgulho para o Brasil.

A operação de compra da Ipiranga representa um legítimo investimento para a adequação da produção à demanda de derivados e, em lugar de aumento de preços, colima impedir o iminente aumento de preços que adviria da eventual e sem dúvida esperada quebra da Ipiranga em um futuro muito próximo. Não custa lembrar, ainda, que a integração refino-petroquímica permite o surgimento de economias de escala, a otimização de processos, permitindo um melhor aproveitamento de correntes intermediárias da indústria petroquímica e aumentando a margem da atividade com produção de derivados de maior valor agregado.

Deixar 'quebrar' uma refinaria - e nesse estudo, por questões de contenção de espaço, estamos abordando apenas o aspecto refino dentro do leque de atividades da Ipiranga - significa, indiretamente, desestabilizar toda a cadeia petroquímica, na qual o refino não é senão o primeiro degrau. Recorde-se, ainda, o caso da compra da argentina Perez Companc pela Petrobras. Em parecer da Advocacia Geral da União (AGU), revelou-se o fato de que, no mercado mundial de produção de petróleo, a participação das envolvidas não atingiria, após a aquisição, os requisitos necessários a caracterizar o poder de mercado passível de abuso. Por que então seria diferente a situação ora sob os holofotes?

Compare-se a Perez Companc à Ipiranga! Pois o mercado, para efeito do escrutínio do SBDC, é o mesmo: senão o mercado mundial (e tem sido tendência em decisões recentes do Cade considerar mercado relevante o mercado mundial, quando as empresas detêm capacidade logística e de distribuição apta a escoar sua produção mundialmente, o que com certeza é o caso), pelo menos que se considere o mercado relevante do Cone Sul, como se fez no caso Perez Companc. Assim, a decisão aqui não poderá ser diferente daquela adotada acolá.

Heller Redo Barroso é sócio do escritório Bastos-Tigre, Coelho da Rocha e Lopes Advogados

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