Opinião

O novo capítulo da revisão das garantias físicas das usinas hidrelétricas

É fundamental que a revisão de garantia física seja amplamente discutida com a sociedade e com agentes interessados, de modo a garantir a transparência do processo e mitigar eventuais questionamentos, como observado no passado

Por Mariana Saragoça

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O modelo setorial atualmente vigente estabelece a possibilidade de comercialização de energia elétrica, por geradores, no âmbito dos chamados Ambiente de Contratação Livre (ACL) e Ambiente de Contratação Regulada (ACR).

O Decreto nº 2.655, de 2 de julho de 1998 definiu, dentre outros, que a cada usina hidrelétrica corresponderá um montante de energia assegurada – hoje nomeada como garantia física – que pode ser definida como a quantidade máxima de energia, estabelecida pelo Ministério de Minas e Energia (MME), que poderá ser utilizada para comercialização, constituindo o limite de contratação para os geradores hidrelétricos do Sistema Interligado Nacional (SIN).

Para tanto, são definidas premissas técnicas e metodológicas que têm por objetivo estimar, da forma mais precisa possível, a energia que efetivamente será gerada por cada usina hidrelétrica e que, ao fim, poderá ser comercializada no âmbito do SIN.

Por óbvio, por mais apurados que sejam os cálculos para a definição da garantia física, a expectativa de geração pode não se confirmar por uma série de fatores, sejam eles técnicos ou mesmo meteorológicos, razão pela qual o referido Decreto previu, para as usinas hidrelétricas participantes do Mecanismo de Realocação de Energia – MRE, a possibilidade de revisões ordinárias de garantia física a cada 5 anos ou ainda a ocorrência de revisões extraordinárias na ocorrência de fatos relevantes.

Adicionalmente, objetivando conferir certa segurança aos agentes e ao Sistema, foi definido ainda que as revisões de garantia física não poderão implicar redução superior a 5% do valor estabelecido na última revisão, limitando, ainda, as reduções a 10% do valor original da garantia física durante todo o período da outorga.

Fato é que, mesmo com a referida disposição normativa vigente desde 1998, o histórico do setor evidencia a extrema dificuldade no cumprimento do dispositivo normativo, com os processos de revisão de garantia física sendo sempre objeto de intensos questionamentos e discussões, evidenciando a necessidade de ultrapassar diversos obstáculos para sua implementação.

A título de exemplo, e até mesmo em aparente conflito com a previsão das revisões ordinárias das garantias físicas, foi editada a Portaria MME nº 303, de 18 de novembro de 2004, que definiu que a garantia física das usinas hidrelétricas seria o valor até então vigente e que seria mantido até 31 de dezembro de 2014.

Em outra oportunidade, no ano de 2009, também foi editada a Portaria MME nº 463, de 3 de dezembro de 2009, que tinha por objetivo estabelecer a metodologia para o cálculo dos montantes de garantia física de energia de usinas hidrelétricas não despachadas centralizadamente.

Esta última, embora tenha fundamentado a revisão da garantia física de alguns geradores, foi objeto de diversos questionamentos judiciais que acabaram por impedir a eficácia de parte das revisões de garantias físicas, até que o próprio Ministério de Minas Energia editou sua Portaria nº 376/2015 que suspendeu parte dos efeitos da Portaria original.

Não fosse suficiente todo este histórico de ausência de previsibilidade e segurança jurídica, as garantias físicas de usinas hidrelétricas também foram o centro do talvez maior imbróglio do setor elétrico na última década, qual seja, a judicialização do chamado GSF, ocorrida a partir dos anos de 2014 e 2015 e que só veio a ser equacionada no último ano de 2021 após a publicação da Lei nº 14.052, de 8 de setembro de 2020, e da Lei nº 14.182, de 12 de julho de 2021.

Diante de todo este cenário, poder-se-ia afirmar que o primeiro processo estruturado para a revisão das garantias físicas das usinas hidrelétricas só veio a ocorrer quase 20 anos após a publicação do Decreto nº 2.655/1998, no ano de 2017, formalizado por meio da Portaria nº 178, de 3 de maio de 2017, que definiu as garantias físicas que vigeriam a partir de 01.01.2018.

Com isso, em atendimento ao prazo definido no Decreto e passados 5 anos do último processo de revisão ordinária de garantia física, o Ministério de Minas e Energia instaurou a Consulta Pública nº 123/2022 – cujo prazo de contribuição se encerra no próximo dia 03.05.2022 – que objetiva, exatamente, apresentar as premissas, a metodologia e o critério para a revisão ordinária de garantia física de energia a ser realizada em 2022 para início de vigência em 01.01.2023.

No âmbito da análise inicial realizada pelo MME, foi indicado que a revisão pretendida abrangeria usinas hidrelétricas cuja garantia física esteja válida e eficaz há pelo menos 5 anos em 31.12.2022.

Ainda no âmbito das informações iniciais, foi reafirmado um conceito de extrema relevância para o planejamento setorial e mesmo para o planejamento de investimentos dos agentes no sentido de excluir do processo de revisão ordinária de garantia física as usinas em processo de privatização ou capitalização que não estariam sujeitas aos limites para a redução da garantia física acima indicados.

Considerando a relevância da hidroeletricidade em nossa matriz elétrica, o estabelecimento das garantias físicas das usinas hidrelétricas tem extrema importância na segurança do suprimento e no planejamento da expansão bem como no equilíbrio do setor, na adequada atribuição de riscos e, em última instância, na modicidade tarifária.

Em razão destes aspectos – aliados ao conturbado histórico – é fundamental que a revisão de garantia física seja amplamente discutida com a sociedade e com agentes interessados de modo a garantir a transparência do processo para mitigar eventuais questionamentos como observado no passado.

Nessa esteira e tendo em vista a tramitação de Projetos de Lei sobre a modernização do setor elétrico, entende-se também ser necessária uma discussão mais profunda para que o novo marco legal traga a segurança jurídica necessária ao desenvolvimento do setor considerando todos os novos fatores como a ampliação do acesso ao mercado livre e a possibilidade de prorrogação de outorgas.

Mariana Saragoça é advogada e sócia do escritório Stocche Forbes, e atua nas áreas de Direito Administrativo, Infraestrutura e Regulação; Frederico Accon Soares é advogado sênior e sócio do escritório Stocche Forbes, com atuação nas áreas de Direito Administrativo, Infraestrutura e Regulação com ênfase no Setor Elétrico

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