Opinião

O bom e o ruim do Plano Decenal 2007-2016

Por Redação

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Desde meados da década de 90 até anos recentes, o planejamento energético de longo prazo no Brasil, sobretudo o de energia elétrica - então coordenado pela Eletrobrás -, sofreu descontinuidade, pelo menos no alto nível de detalhamento como era realizado. Ou seja, inacreditavelmente, deixou de ser feito por mais de uma década! Os Planos Decenais de Energia Elétrica (PDEE) marcam, por assim dizer, a retomada dessa visão estratégica necessária ao norteamento de uma infra-estrutura tão crucial ao país.

A própria constituição da EPE, responsável por desenvolver esse planejamento, é sinal do reconhecimento dessa urgência. O reflexo dessa curva de aprendizado e da troca com os agentes sociais já é perceptível quando se compara o PDEE 2006-2015 com o PDEE 2007-2016. O recém-lançado plano incorpora melhor as dificuldades advindas do suprimento de gás natural e é mais detalhado quanto ao potencial prospectivo da biomassa na matriz energética do país.

E, principalmente, chama a atenção por ser bastante explícito quanto à necessidade de reformas microeconômicas para que o Brasil veja os investimentos em infra-estrutura se tornarem realidade. Aliás, registra-se nesse último tópico uma grata surpresa. É como se houvesse plena consciência nos bastidores do governo do poderoso impacto que essas reformas microeconômicas poderão ter sobre a oferta de infra-estrutura.

E isso ocorre em todos os seus cenários, desde o mais cor-de-rosa ao mais 'náufrago', como é denominado pelo próprio PDEE o cenário mais pessimista. Há, entretanto, aspectos no novo PDEE que não trazem tranqüilidade. Dentro do amplo espectro energético abrangido - com previsões de oferta e demanda para petróleo e derivados, gás natural, biomassa e energia elétrica -, é possível notar que as maiores tensões já captadas pelos termômetros do mercado são relativas ao balanço da energia elétrica.

Então, mais do que uma insegurança energética generalizada, advinda das várias fontes de energia, os agentes mais diretamente envolvidos temem o aumento de risco de um novo racionamento no setor elétrico. Diga-se, de passagem, que nem é preciso que o racionamento se concretize para causar estragos. A simples perspectiva de um risco maior, por si só, é capaz de afetar a taxa de crescimento do PIB, seja pela postergação de novos investimentos nacionais e internacionais, pela procrastinação de aumentos de produção ou pelo aumento do custo do insumo eletricidade, que poderá se tornar restritivo no futuro, reduzindo, desde o presente, a competitividade da indústria e o bem-estar da população.

De que se alimenta a insegurança crescente quanto ao potencial desequilíbrio no setor elétrico, que não consegue ser aplacada pelo novo plano decenal? Essencialmente, os cenários apresentados pelo PDEE são muito apertados, com baixo grau de manobra. Do lado da demanda, o país não pode almejar ou mesmo se permitir crescer sequer a taxas equivalentes à média dos países emergentes sem que haja um aumento inaceitável do risco de falta de energia elétrica.

Uma rápida olhada em taxas de crescimento do PIB de vários países mostra quanto elas são voláteis e indisciplinadas. Associe-se a isso o fato de que, num cenário de PIB mundial em forte expansão como o atual - com o comércio global apresentando taxas de crescimento bastante superiores àquelas do próprio PIB mundial -, as taxas de crescimento das exportações brasileiras tendem, conseqüentemente, a continuar fortes por mais tempo. Assim, talvez não seja razoável esperar que a demanda dos grandes consumidores nacionais, muitos dos quais voltados ao setor exportador, apresente crescimento mais modesto.

Também não se deve alimentar a expectativa de que esses consumidores dêem conta de providenciar suas necessidades energéticas driblando as dificuldades latentes na infra-estrutura de geração de energia. Do lado da oferta, por sua vez, a situação parece ainda mais intricada. Pode-se constatar que a opção pela diversificação do mix de energia elétrica via gás natural parece um sonho cada vez mais distante. E não é porque as térmicas existentes irão desaparecer, mas porque o gás vem se tornando cada vez mais caro e seus múltiplos usos competem em situação de vantagem com sua destinação à geração elétrica no país.

Assim, ainda que o PDEE 2007-2016 esteja na direção certa ao reduzir a participação final do gás na matriz energética, ele não parece incorporar plenamente os efeitos de sua já presente escassez e de seu potencial aumento de custo no mix, mais específico, de energia elétrica. Entre os inúmeros 'senões' que se interpõem ao 'uma vez desejado' lastro de seguridade que seria aportado pelo gás natural ao setor elétrico brasileiro (MARQUES; PARENTE, 2007), há fatores como:

- as restrições ao incremento do suprimento oriundo da Bolívia, pelo aumento do risco institucional daquele país, associado às pressões de demanda de Argentina e Chile;

- a ausência generalizada de interesse em novos empreendimentos de geração a gás, uma sinalização de que múltiplos e potenciais agentes não estão considerando este um negócio minimamente rentável;

- a constatação da redução da capacidade de resposta e, portanto, da energia firme, proveniente do parque termelétrico, quando acionado nesses últimos meses;

- a fragilidade do termo de compromisso assinado entre Petrobras e Aneel quanto à disponibilidade das termelétricas, que não prevê penalidades relevantes para seu eventual descumprimento nem repõe totalmente a redução da energia firme detectada;

- as dificuldades na importação de GNL em um mercado caro e aquecido, dificultando a celebração de contratos de suprimento desse insumo em bases mais firmes e nos volumes desejáveis para cobrir o crescimento projetado da demanda;

- as incertezas associadas aos estudos ainda pouco conclusivos sobre a viabilidade econômica da infra-estrutura de regaseificação e de novos gasodutos por parte da Petrobras, e o reflexo que decisões vistas como precipitadas poderão desencadear sobre seus investidores em Wall Street;

Do ponto de vista da biomassa, em especial da cana-de-açúcar, outras considerações merecem ser feitas. Lições do passado não devem ser esquecidas, quando a subida do preço do açúcar, associada à queda de preço do petróleo, tiveram forte impacto na descontinuidade do abastecimento de etanol para o mercado interno. Mas o que isso teria a ver com o momento de hoje ou com um futuro talvez não muito distante? Observa-se que a rentabilidade da cana, tanto no fornecimento de álcool como de açúcar, tem se apresentado historicamente muito superior à do setor de geração termelétrica (BRITO et al, 2007).

A cana possui cerca de um terço de sacarose e dois terços de celulose e, atualmente, só é produzido etanol a partir da sacarose. Entretanto, tecnologias ditas de segunda e terceira gerações - tais como a hidrólise enzimática que transforma o bagaço da cana ou qualquer celulose em material fermentável, que pode ser utilizado para produção de álcool; e a biomassa gaseificada associada a reações de síntese para produzir combustíveis líquidos - acenam para um uso dos quase três terços da cana. Assim, com os novos avanços que despontam no horizonte de P&D&I (pesquisa, desenvolvimento e inovação), é possível imaginar que um aumento na produtividade de etanol, associado ao crescente interesse por esse combustível no mercado externo, possam canibalizar seu uso na geração termelétrica.

Embora o PDEE se tenha mostrado cuidadoso na contabilização atualizada da nova geração elétrica, levantando a situação de cada empreendimento que deverá ser agregado ao sistema, seja ele pequeno ou grande, não se pode taxar de infundada a insegurança dos agentes em relação a quantos desses empreendimentos irão de fato se concretizar, e se o farão em tempo hábil. Nesse ponto, os agentes, embora ajam de modo subjetivo, o fazem de forma muito pragmática.

Ou seja, se alguém chegou, em média, 20 minutos atrasado aos últimos encontros, e mesmo se sequer apareceu em alguns dos compromissos, pouco adianta simplesmente apresentar uma análise que mostre que estão presentes as condições objetivas de chegar na hora aos próximos encontros, e que só o futuro deve importar à análise. A aceitação dessa tese não seria uma atitude realista e tampouco se pode dizer que a desconfiança se lastreia em má vontade.

O que restaria, então, para garantir a segurança do suprimento de energia elétrica? De fato, diante das dificuldades no gás natural, como também da constatação de que a biomassa poderá ter usos mais rentáveis, desviando o bagaço da geração, e que outras fontes de energia como nuclear e fontes incentivadas, embora com contribuições relevantes, ainda serão mais caras e não poderão dar conta de uma solução no atacado, é preciso abraçar a realidade que indica para o Brasil um velho lema.

Um lema tão simples quanto 'mais do mesmo'. Ou seja, a despeito de todos os percalços, a geração hidrelétrica, essa velha conhecida dos brasileiros, fonte sobre a qual há domesticamente mais segurança e know-how, precisa ser viabilizada. Ainda que em empreendimentos cada vez mais distantes. Ainda que com mais linhas de transmissão. Ainda que com sinais locacionais mais explícitos para orientar as novas ofertas e demandas.

Sobretudo, a opção hidrelétrica deve ser enfatizada e respaldada pela presença firme do governo. Espera-se, assim, uma atuação decidida, capaz de arbitrar com prontidão os conflitos com as questões ambientais, regionais e de reservas inadequadas de direitos. Mesmo que o tambor do revólver aponte para as baixas chances de um racionamento, aceitar esse risco não parece uma atitude prudente.

Virgínia Parente é Pós-Doutora em Energia e professora do Programa Interunidades de Pós-Graduação em Energia da Universidade de São Paulo (PIPGE-USP) Referências Marques, Fernando e Virgínia Parente. Impactos do Fornecimento de Gás Natural no PDEE 2007-2016: uma Avaliação Preliminar. Programa Interunidades de Pós-Graduação em Energia, Universidade de São Paulo, (Mimeo), 2007. Brito, Érico Henrique Garcia de; Erik Eduardo Rego e Virgínia Parente. Biomassa de Cana na Geração Elétrica: um Estudo de Viabilidade. Programa Interunidades de Pós-Graduação em Energia, Universidade de São Paulo, (Mimeo), 2007.

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