Opinião

Gás natural matéria-prima

Por Redação

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O biênio 2006/2007 provavelmente ficará como um marco na indústria do gás natural no Brasil. Em 2006, sob o ponto de vista econômico, o crescimento foi interrompido pela primeira vez depois de 1998. Não houve propriamente uma crise, mas, como ocorreu em 2001 no setor elétrico, o impacto da escassez se estenderá pelos próximos dois anos.

Em 2007, sob o ponto de vista político, após tramitar no Senado Federal, chega à Câmara dos Deputados o projeto de lei do ex-senador Rodolpho Tourinho (PFL-BA) - relatado na Comissão de Infra-Estrutura pelo senador Sérgio Guerra (PSDB-PE). Ele será apensado aos dois outros projetos em análise naquela casa, sendo um deles de iniciativa do próprio governo. O deputado a ser designado como relator terá a oportunidade de elaborar o marco legal de que o setor tanto carece.

É o momento, portanto, de avaliar a experiência recente e de (re)definir as estratégias para uma indústria ainda infante. Raramente abordado, o perfil extremamente pobre da demanda em termos energéticos e econômicos e a ausência de uma política de agregação de valor no aproveitamento do gás como matéria-prima - que poderia reverter a tendência atual - devem ser sublinhados de forma a apontar, por um lado, as ameaças cada vez mais presentes ao futuro da indústria; por outro, uma ocasião única para se construir as bases industriais do país sob novo patamar, mais de acordo com a divisão internacional do trabalho que o século 21 anuncia.

A história recente do gás natural merece figurar como estudo de caso em qualquer ementa de economia de energia. À primeira vista, trata-se de um franco sucesso: em 1998, as vendas das distribuidoras somavam 13,1 milhões de m3/dia; em setembro de 2006, elas alcançaram 44,2 milhões de m3/d. O crescimento das vendas foi de 27% anuais, muito superior ao crescimento do país.

A participação na matriz energética, que no início da década passada era insignificante (menos de 2%), hoje beira 10%. Mais em detalhe, porém, o que se observa é uma sucessão de improvisos e de iniciativas imediatistas, que contribuíram para a gravidade da presente situação. Em 2006, revelaram-se a já consumada captura do energético pelo setor elétrico, o comprometimento do abastecimento veicular e a falta de incentivos para seu uso como matéria-prima. Do lado da oferta, a recente vitalidade teve início com o Gasbol.

A importação eliminou a limitação decorrente da natureza associada ao petróleo da produção interna do gás. Contudo, o interesse diplomático, o pioneirismo da obra e o apelo da integração regional falaram mais alto e em nenhum momento foi ressaltado o risco embutido na dependência que iria ser criada. Hoje, metade do gás provém do país vizinho. Pela demanda, a necessidade de ocupar rapidamente o duto justificou usos sem planejamento adequado.

O crescimento foi calcado naqueles usos que menos valor agregam e nos quais a eficiência energética é menor, uma vez que as fontes substituídas são incontestavelmente superiores. Não por acaso, os novos consumidores são aqueles com a menor disposição para pagar. Por isso mesmo, a forma como foi viabilizada a penetração, essencialmente baseada em renúncia fiscal (para uso veicular) e em elevação das tarifas (para eletricidade), faz da experiência brasileira a antítese do planejamento. No transporte, a penetração não previu o crescimento exponencial.

A introdução do álcool na década de 1970 e a revitalização de sua produção (por conta dos motores flex e das vantagens ambientais) diferenciam o país no cenário mundial. O consumidor brasileiro tem um benefício que nenhum outro dispõe, ao poder escolher entre álcool e gasolina. Em contrapartida, a matriz de transporte brasileira, apoiada no modal rodoviário, é fortemente dependente de óleo diesel. Sem nenhuma lógica econômica, o gás natural substituiu a gasolina - exportada, porque sobra - e não o diesel - importado, mais de US$ 1 bilhão em 2006).

Some-se a isso a perda de eficiência dos motores a quatro tempos quando adaptados à queima de gás e se chega à atual situação: em sete anos, o uso veicular abocanhou mais de 10% do energético disponível. Na geração elétrica, sem discutir as vantagens evidentes em matéria de flexibilidade de carga e localização inerentes à alternativa representada pelas térmicas a gás, os recentes testes feitos a pedido da Aneel demonstram que também existem problemas. Como se não bastasse a expansão ter sido limitada a cerca de 30 milhões de m3/d e as duas novas demandas comprometerem metade desse aumento - atualmente o consumo automotivo está em torno de 7 milhões de m3/d, e o de geração, em torno de 8 milhões de m3/dia -, pouca atenção tem sido dispensada aos usos mais nobres.

As utilizações do gás natural podem ser divididas de acordo com seu uso energético ou não-energético. Tecnicamente, o gás natural pode ser queimado ou transformado, o que resume bem os benefícios. Além da diversidade de alternativas para o aproveitamento, o número de etapas que formam a cadeia de realização do valor e a conseqüente extensão dessas cadeias são destacados. A importância de fatores tecnológicos favorece a integração física e produtiva das unidades e cria uma forte interdependência empresarial - decisiva para a realização do valor no fim da cadeia.

Queima-se gás para gerar eletricidade, para gerar calor e no seu uso veicular. Quanto à geração de riqueza, esses usos apenas dobram o valor inicial. A adição é muito maior quando o produto é transformado. A partir da amônia e da uréia, a produção de fertilizantes chega a triplicar o valor original do gás. Isto explica a vantagem comparativa da Rússia no comércio de fertilizantes. A produção de hidrogênio e metanol, matérias-primas para indústria química e petroquímica, agrega entre três e cinco vezes o valor do energético. O aproveitamento de etano, propano, butano e outros pode multiplicar por sete esse valor.

A disponibilidade limitada explica porque o uso como matéria-prima é ainda restrito a menos de um décimo da média de 44 milhões de m3 consumidos por dia no país, apesar de todas as vantagens. Contudo, não se justifica a ausência de uma política de demanda que incentive esses usos mais nobres. Ainda mais quando se observa que os desafios tecnológicos e de comércio exterior, que envolvem o aproveitamento químico do gás natural, não poderão ser superados sem regulação específica, sem a presença do Estado e sem a articulação dos agentes produtores. Além de agregar mais valor, a transformação do gás diversifica a base sob a qual se apóia a indústria química brasileira. A última e isolada ampliação nesse sentido foi a conclusão da Riopol, em 2005.

O consumo de gás natural matéria-prima (GNMP) brasileiro, em conseqüência, cresceu de 2,8 milhões para quase 4 milhões de m3/d. Embora a transformação seja ainda marginal, a indústria química sempre foi fortemente dependente do gás para geração de calor nos processos de produção. Esse setor responde por um quinto de todo o produto vendido e metade de seu uso industrial. Na transformação, a participação do gás chega a 80% dos custos, e a despesa com energia representa pelo menos 20% dos custos petroquímicos. A indústria química é o segundo setor em importância no PIB industrial - 12,5% do total.

Em termos produtivos, a qualidade e o preço de seus produtos impacta nos mais diferentes setores, como alimentos, medicamentos e saneamento. Em termos comerciais, o setor é responsável por um crescente déficit: mais de US$ 7 bilhões em 2006, quando em 1991 ele se resumia a US$ 1,5 bilhão. A elaboração da Lei do Gás, se não remove o passado, nem soluciona o presente, ao menos é a ocasião para se corrigir o futuro. O descuido para com o energético foi total quando da elaboração da Lei do Petróleo e da reforma setorial que se seguiu.

São quatro parcos artigos, referindo-se apenas ao transporte. O gás é tratado como derivado, sendo ignorado o fato de ser imprescindível, seja como energético, seja como matéria-prima. Não surpreende assim a fragilidade das autorizações da ANP, a persistência do monopólio da Petrobras, os gasodutos que não saem do papel, as térmicas (sem gás) em ciclo aberto, sendo convertidas à queima de óleo e plantas de regaseificação de GNL em fundo de baía.

O gás natural não merece o tratamento que até aqui lhe foi dispensado. A nova lei é a oportunidade de se definir qual é o papel do órgão regulador, quais são os instrumentos de planejamento e coordenação necessários à expansão da oferta, quais são as regras no transporte, qual o espaço das térmicas, quais as prioridades no uso e a correspondente política de preço. Ao deputado designado como relator caberá a responsabilidade de organizar o debate, cotejar os conflitos de interesse e contribuir para o preenchimento de uma flagrante lacuna regulatória.

Em energia, a experiência brasileira comprova: a repetição dos erros cobra alto. É também o momento de se sinalizar para o mercado que, em seu uso não-energético, como matéria-prima para a indústria química, o gás natural será parte integrante das alternativas do setor, de forma a aprofundar a competitividade da cadeia produtiva.

Carlos Alberto Lopes é economista e diretor da Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim) Luís Eduardo Dutra é professor da Escola de Química da UFRJ e assessor da DG - ANP

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